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Mostrando postagens de 2025

O Caldo da Caridade e o Vô que Mentia com Classe

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O status de minha irmã Rivane denucianava: ela orgulhosamente exibia um saboroso caldo da caridade feito por mamãe, foi quando lembrei que lá em Capitão de Campos, no tempo em que a internet era só um passarinho fofoqueiro no fio da luz, o entretenimento da família vinha em duas formas: o caldo da caridade da tia Conceição e as histórias mentirosas, porém deliciosas, do vô Edmundo. Nas tardes, a gente se amontoava no terreiro, cada um com seu prato de alumínio amassado, esperando a fumacinha sagrada sair da panela. Era mingau de farinha de mandioca, grosso e perfumado, com ovo de galinha caipira, coentro colhido no quintal, muita pimenta do reino e um poder milagroso: curava toda mazela, ressaca, frieira, dor de cotovelo e até casamento desfeito. — Isso aqui levanta até defunto — dizia a tia, mexendo o caldo como quem invocava uma bênção. — Se Jesus tivesse provado, a multiplicação dos pães era de mingau! Enquanto isso, vô Edmundo começava o espetáculo. Era um contador de causos profis...

Faustino, tu nascestes estrela e eu sou vagalume com sede de céu

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  Foi depois de muito mato, muita manga chupada no pé, palmito de tucum e muita carta nunca enviada que a menina do interior tropeçou num livro de gênero pomposo: Poesia. Abriu por acaso, esperando achar um horóscopo ou receita de doce de buriti, mas encontrou Mário Faustino, o tal Príncipe das Palavras. Achou que fosse nome de santo ou locutor de rádio AM, mas era poeta e dos bons. Achou também que fosse exagero de quem escreveu o prefácio, mas bastou um poema, leu e não entendeu nada. Releu e sentiu tudo, e atestou que aquele cabra sabia encantar até pedra com sílabas.  Os versos eram lapidados com tanto esmero que pareciam bordados de voz. Com mãos de ourives e alma de beija-flor, ágil na arte de prender pela delicadeza. Ela não discerniu o pensamento, mas sabia que estava emocionada e com inveja, que nem sei se é permitido chamar de " inveja boa". Desde então, passou a escrever em todo canto: no caderno da escola, no verso da conta de luz, paredes e na palma da mão. Qu...

Dia dos Avós e as Poções de mato com azeite

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 26 de julho, Dia dos Avós. Eu queria estar num comercial de margarina, café na varanda, risadas suaves, voz de neto dizendo "vovó, te amo", mas a minha realidade é vó Maria Clara e Vô Edmundo, do interior do Piauí, uns tipos de curandeiros bravos, que nunca ouviram falar em margarina — era só manteiga batida no pilão mesmo. Minha avó não comemorava esse dia com flores ou presentes. O presente dela era um gole de mastruz com leite em jejum, e o dele garrafada de aroeira e angico, “pra limpar as impurezas do sangue”. Sangue, intestino, alma — tudo. Eles diziam que criança da cidade adoece porque não toma chá de boldo com casca de laranja e não sabe o valor de uma reza feita com um galho de arruda molhado na água benta do poço. Era só espirrar que já vinha com o galho: “Sai, coisa ruim!” — e três cruzes na testa.  Dor de barriga se curava com chá de erva-doce e barriga inchada, com um unguento de saião esquentado na colher. Qualquer problema mais grave, tipo desobediência, era ...

VOOS E FERRÕES

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Ela nasceu num canto tão esquecido do mapa que nem o Google se atreve a traçar rota. Um fiapo de vereda fincado no meio dos torrões rachados pelo sol. Mas não se enganem com o tamanho: quem nasce estrada não pede licença pra cortar o mundo, vai apenas passando. Viver entre serpentes vira só o treino. Aprende-se que algumas mordem, outras só sibilam. E ela? Passava no meio delas como quem atravessa festa de família: sorrindo, mas de olho. E os escorpiões? Brincava como se fossem piões, dizia que bicho traiçoeiro se doma com coragem e chinelo.Mas o que fazia mesmo brilhar os olhos da menina era o voo dos carcarás. Ficava horas olhando pro céu, achando bonito aquele jeito de quem não deve nada a ninguém. “Quando crescer, vou voar também”, dizia, com um graveto na mão e o barro até os joelhos. A mãe vivia dizendo que ela precisava se comportar, que era uma menina e não estrada. Mas ela já era poeira e horizonte desde o berço. Sabia que quem nasce vereda pode até parecer pequena, mas leva ...

TEIMOSIA DE BORBOLETA

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 Tem ano que a chuva demora chegar no sertão e mesmo quando faz a visita rápida, como quem só veio molhar os pés e ir embora, o milagre acontece: o chão racha menos, o verde se estica e, de repente, surgem elas, as borboletas amarelas – do nada, como fofoca em cidade pequena.Elas aparecem em bando, sem cerimônia, voando torto, mas decididas, como quem já sabe que o mundo é difícil, mas o céu ainda tá lá. E o mais bonito é isso: vêm depois da chuva. Não durante, não antes. Elas esperam a lama baixar, o cheiro de terra subir, e aí sim... dançam no ar, como se dissessem: “Viu? Sobrevivemos de novo!”  E eu fico pensando que a gente, no fundo, é meio borboleta amarela também. A vida manda seca, manda vendaval, manda “não” com gosto, daqueles que vêm em caixa alta e com três exclamações. Mas a gente resiste, recolhe os caquinhos da esperança, e um dia, do nada, sai voando sem nem perceber. Voar no sertão não é luxo, é teimosia com fé. E essas borboletas, miudinhas e atrevidas, são l...

Semeando o Mundo

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  Plantar é um gesto antigo como a fome, sagrado como um abraço de mãe. Há quem veja na terra apenas barro, pó e formiga, mas quem já se ajoelhou com as mãos sujas de húmus sabe: o chão fala. E quando o homem insinua uma semente no ventre do solo, não está apenas plantando milho, feijão ou abóbora. Está, em silêncio, fertilizando o mundo. É um rito. A escolha da lua certa, o cuidado com o sulco, a pausa para ouvir o vento, como quem escuta a prece dos antepassados. Cada grão lançado é um pedaço de fé. E depois, é esperar. Não com pressa, mas com o coração atento, como quem vigia o crescimento de um filho.A chuva, quando vem, não é só água: é milagre. Ela dança no telhado, penetra as raízes, acorda o que dormia. Os primeiros brotos rompem o chão como versos que não couberam mais no peito da terra. Há uma alegria muda em ver a plantação mudar de cor, em acompanhar o ritmo das folhas que se esticam, famintas de luz. Trago a forte lembrança do meu avô Edmundo Basílio, lavrador, repent...

OBSERVADORA DO VOO DOS CARCARÁS

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Há dias em que a alma pede silêncio, mas o mundo responde com poesia. Foi numa tarde dessas, entre o barulho das cigarras e a mansidão do rio que escorria sem pressa, que levantei os olhos e vi o carcará riscando o céu como quem escreve versos com as asas. Eles voam alto, não se apressam, observam tudo com aquele olhar de quem já viu o tempo dobrar esquinas e retornar. No rasgo azul da tarde, parecem senhores do sertão, guardiões de histórias que só o vento entende. Cada batida de asa desenha um mapa invisível, como se orientassem a travessia dos rios e das emoções.Ali, onde o Parnaíba, o São Francisco, o Corrente, o Canindé, o Genipapo, o Longá ou o Poti encontram a solidão das margens, o poeta se senta, não por pose, mas por necessidade. Tem no peito uma rima incontida, daquelas que pulam feito bicho arisco quando não se escreve. Os olhos marejam, não de tristeza, mas de pertencimento. Ele canta as raízes, canta a poeira das estradas, o cheiro do chão molhado, o ventre quente da te...

Sob a figueira de Santa Rosa

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  Quem já viveu o interior sabe: memória tem cheiro, tem poeira de estrada batida, tem a brisa quente trazendo o cheiro da piçarra misturada com areia solta, que sobe quando o caminhão passa estalando os pneus. Hoje lembrei do povoado Santa Rosa, onde eu costumava visitar a madrinha, no período de férias, fica na cidade de Piripiri, no coração quente do Piauí. Lá, as lembranças não se perdem — elas ficam presas nas árvores, no vento e na alma da gente. No fim de tarde o vento começava a brincar com as folhas dos oitis, que enfileirados faziam sombra pra quem voltava do roçado. Os mais velhos puxavam conversa à toa debaixo das sombras largas, falando da chuva que não vinha ou do gado que emagreceu. O tempo andava devagar por ali, como se soubesse que pressa era coisa de cidade. Tinha, ou melhor, ainda resiste o grande pé de figueira, ah, aquele pé de figueira! Imponente, na chegada ao do povoado, como quem dá boas vindas, mais velho que muita promessa feita em dia de São José. Diz...

UM NÓ EM NÓS

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Em alguma varanda sombreada por parreirais ou sob o alpendre de uma casa de barro batido, um grupo de mulheres senta em roda como quem borda o tempo. São as artesãs — mãos que sabem conversar com a linha, agulha, com a palha, com o barro, com a madeira. Cada ponto dado é uma história costurada entre gerações, uma herança que não se perde porque vive sendo refeita. Ali, não se trabalha apenas com fios e tintas: trabalha-se com paciência, com memória. Minha tia Sheila, por exemplo, aprendeu o crochê eu nao sei como, e eu aprendi com ela. Enquanto seus dedos bailam entre agulhas e novelos, ela conta histórias do tempo e até lembro quando tecíamos para as bonecas ou víamos os meninos fazer carrinhos de talo de buriti. Acima de tudo, a arte é também uma forma de manter os afetos vivos. No sertão de Pedro II, tem mulher que borda pedras: as opalas azuis que saem da terra e ganham brilho em anéis e brincos. Tem rendeira que desenha o vento com bilros, como se a própria brisa se deixasse pre...

ONDE AS ÁGUAS SE ABRAÇAM

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  No coração do Piauí, entre o calor da terra e o sussurro das árvores ribeirinhas, dois rios se encontram como velhos amigos que, por caminhos distintos, sempre souberam que um dia se abraçariam.  O Parnaíba vem largo, soberano, com sua alma de rio grande e paciente, arrastando memórias de outras margens, de outras cidades, de outras histórias. Ele carrega em suas águas a espessura do tempo, a força dos sertões, a sabedoria de quem já viu o Sol nascer em mil tons sobre suas correntezas. Já o Poty chega mais leve, apressado e jovial, como quem vem correndo para contar uma novidade. Vem cortando a cidade, refletindo prédios, barcos, gente — e a pressa dos dias modernos. Mas guarda também o espírito das matas e as canções dos bichos que sussurram quando a cidade adormece. O encontro dos dois não é colisão. É gesto de reconhecimento. Um curva-se um pouco, o outro desacelera. É como se um oferecesse ao outro um copo d’água e dissesse: “Senta, me conta da tua jornada.” Lá, bem ali ...